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Mente descontínua

Manoel Vicente de Barros 01/03/2021 Artigos

Tudo é isso ou aquilo, preto ou braco, sim ou não, mas a realidade não é assim

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Evoluímos sem tempo para pensar, era preciso classificar, de forma automática, rápida, simples. Decisões em um piscar de olhos. Você está aqui porque seu ancestral não filosofou antes de correr de uma onça.


Se ao invés de fugir ele refletisse sobre os diversos fatores envolvidos no temperamento daquele felino específico e tentasse calcular o grau de fome que ela sentia naquela tarde, ele seria o lanche do dia.


Um local só podia ser seguro ou perigoso, outro homem era aliado ou inimigo, o meio termo mais ajudava que atrapalhava. Estamos programados para pensar em termos absolutos, relativizar custa demasiado tempo e energia.


Tudo é isso ou aquilo, preto ou braco, sim ou não, mas a realidade não funciona assim.


O biólogo evolucionista Richard Dawkins chamou esse fenômeno de mente descontínua. É muito abstrato enxergar o cinza, o impreciso, as etapas sutis e gradativas que transformam um neanthertalis  em um sapiens.


Apesar de buscarmos, não existem linhas divisórias claras em diversos aspectos do universo. Existem gradientes contínuos, entre um ponto e outro. A natureza odeia uma fronteira precisa, nós amamos.


Tentar encontrar linhas divisórias o tempo todo atrapalha o entendimento de fenômenos complexos, como genética, medicina, política ou economia. Cheios de nuances, poréns, senãos e talvezes.


Momentos de privação ou medo, como a pandemia atual, acionam esse raciocínio simplista, límbico e emotivo.


Esse remédio é bom para tratar COVID? Usar máscara protege contra a infecção? Essa vacina garante que não vou adoecer? Posso ficar totalmente despreocupado para o próximo Carnaval?


Quem faz essas perguntas não está buscando a resposta mais precisa, pois ela necessariamente será imprecisa. O que se busca é certeza, segurança, o amparo de uma resposta exata.


Honestidade científica sempre mantém uma margem de erro, espaço para dúvida. Situações intermediárias que só podem ser estimadas.


Por isso as fake news não partem dos ponderados. Os predadores estão cheios de certeza, o que a ciência séria tem dificuldade em fornecer.  Se não fugir, eles te devoram.


Ouvir lados opostos, considerar informações conflitantes, refletir e pesar riscos e benefícios é o pensamento humano democrático, refinado e evoluído. A mente descontínua é tirana, grosseira e assustada.


Como médicos, somos alvos dessas inquisições, ter certeza sobre o novo remédio, a nova técnica, o novo diagnóstico. O tempo de recuperação, o tempo de vida, o tempo de efeito.


Algumas coisas são mais seguras que outras, aquelas têm riscos diferentes, nada é perfeito, nem absolutamente seguro.
Aceite o impreciso. É desconfortável, mas é o único caminho para sermos algo além de bichos assustados, presas fáceis.

Manoel Vicente de Barros é psiquiatra

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