Se o brasileiro vive cada vez mais em idade, a qualidade desse viver costuma se inverter - ser alvo nunca foi benesse para ninguém
Com a proximidade do Dia Internacional das Pessoas Idosas e do Dia Nacional do Idoso, datas celebradas em 1º de outubro, duas situações distintas mostram como o Brasil trata aqueles que deveriam merecer mais respeito e dignidade.
Era 2016 e eu chegava à casa de Dona Lourdes Alencar, em Recife, e ela logo me perguntava se havia um carro atrapalhando a entrada da garagem dela. Tem carro nenhum lá, Dona Lourdes... O que a senhora andou aprontando? Eu? Aquele filho duma égua é que nunca mais faz nada comigo!
E lá foi Dona Lourdes, na época já com mais de 60 anos, explicando que chegou dois dias antes e o carro do vizinho atrapalhava de novo a sua garagem. Ela, irritada com razão, deu-lhe um baile bem à moda antiga.
Ele levantou a voz e levou da senhora um tapa que caiu sentado. Agora se levante e bata numa idosa pra você ver se num boto você em cana, seu covarde! Bata numa idosa, bata! O homem se levantou fervendo, mas não revidou e também nunca mais colocou o carro nem perto do portão dela.
Com Dona Lourdes Alencar é assim, ninguém mexe; nem com ela, nem com os seus. A mulher que foi violentada várias vezes na infância pelo próprio pai foi a mesma que cresceu tendo que se impor, que adotou 10 filhos tirando-os de situações das mais absurdas, que se valeu de si mesma para não deixar tantas violências lhe amiudarem.
Sua história é contada na biografia escrita por mim “Todos os Amores de Lourdes”, obra que acaba ganhando outros contornos quando falamos sobre a proteção e a valorização dos nossos idosos.
Em contraponto, dia desses circulou um vídeo de dois covardes agredindo um idoso, motorista de aplicativo, para roubá-lo em São Vicente (SP). Indignante! Infelizmente, esse é o retrato do Brasil hoje: um país cujos idosos são tratados, regra geral, como alvos, seja por criminosos, bancos, cooperativas de crédito, planos de saúde e até por familiares.
Se o brasileiro vive cada vez mais em idade, a qualidade desse viver costuma se inverter - ser alvo nunca foi benesse para ninguém. Que o diga Dona Lourdes, hoje com 74 anos e que sofre com as consequências de dois infartos, um AVC e pela diabete.
Esse senhor de idade que apanhou em São Paulo sequer fez um boletim de ocorrência, por medo de represálias. Ele e Lourdes são figuras distantes, mas emblemáticas: refletem o enorme débito que temos com nossos idosos ao perpetuarmos esse modelo de desrespeitos e violências absurdas. Pior é que, se nada fizermos para mudar essa cultura abusiva, seremos nós, amanhã, também vítimas. E apenas por termos chegado à “melhor idade”.