A mudança começa com cada um de nós, com nossa atenção ao que dizemos e ao que perpetuamos. Não se trata de “mimimi”, como alguns gostam de acusar. Trata-se de respeito
É assustador como certos preconceitos se enraízam nas palavras que usamos sem sequer nos darmos conta. Capacitismo, termo ainda pouco compreendido por muitos, é uma dessas discriminações que, por vezes, se escondem em frases que aprendemos a repetir sem questionar. Mas elas carregam uma carga pesada, humilhante e desrespeitosa para milhões de brasileiros que vivem com algum tipo de deficiência. E o pior de tudo: essas palavras não são apenas ofensas veladas, mas refletem a maneira como a sociedade vê essas pessoas — como incapazes.
Pense nas expressões que ouvimos, e até usamos, no cotidiano: “Fingir demência”, “Parece que é cego”, “Está mal das pernas”, “Deu uma de João sem braço”, “Igual a cego em tiroteio”. São frases que trivializam, zombam e associam deficiências físicas ou cognitivas a algo negativo ou indesejado. Como se a deficiência fosse motivo de piada ou sinônimo de inabilidade. Mas não é. O que estamos perpetuando ao repetir essas expressões é o capacitismo, esse preconceito que age como uma ferrugem invisível, corroendo qualquer chance de construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva.
E nos cerimoniais “todos de pé para ouvir o Hino Nacional”. Como?!? E as Pessoas com Deficiência? Aquelas que estão em cadeiras de rodas? E os idosos?
Dados do IBGE mostram que, no Brasil, mais de 19 milhões de pessoas convivem com algum tipo de deficiência. Esses brasileiros, como qualquer outro, têm o direito de viver com respeito, dignidade e oportunidades justas. O fato de ainda precisarmos de campanhas para conscientizar sobre isso, como a promovida recentemente pelo Ministério da Saúde, já é um triste indicativo do quanto ainda estamos longe de alcançar um patamar civilizado em nossa convivência social.
O capacitismo vai além da linguagem. Ele está nas calçadas que não são acessíveis, nas escolas que não oferecem suporte adequado, nas empresas que ainda hesitam em contratar pessoas com deficiência. Ele está na nossa cultura, que insiste em tratar a deficiência como uma limitação intransponível, e não como uma característica que pode ser gerida e vivida com autonomia e capacidade.
Para mudar isso, é preciso, sim, começar pelas palavras. Palavras criam narrativas. E as narrativas moldam a realidade. Quando falamos, estamos desenhando o mundo que queremos habitar. Se continuamos a usar expressões que rebaixam e ridicularizam as pessoas com deficiência, estamos perpetuando um mundo em que essas pessoas são vistas como menos capazes, menos dignas de respeito, menos humanas.
E quem nunca usou uma dessas expressões? Quem nunca soltou um “parece que é cego” para falar de alguém que deixou de notar algo óbvio? Ou um “está mal das pernas” para descrever alguém em dificuldade financeira? O problema está justamente aí: a naturalização. Fazemos isso sem perceber. Mas chegou a hora de perceber. Chegou a hora de refletir sobre o impacto das nossas palavras e atitudes.
A mudança começa com cada um de nós, com nossa atenção ao que dizemos e ao que perpetuamos. Não se trata de “mimimi”, como alguns gostam de acusar. Trata-se de respeito. Trata-se de entender que viver em sociedade exige, antes de tudo, empatia e consideração pelo outro. E essa consideração começa pelo cuidado com o que sai da nossa boca.
Vamos ser honestos: o preconceito não vai desaparecer da noite para o dia. Mas a linguagem pode ser o primeiro passo. Ao parar de usar expressões capacitistas, estamos desarmando uma parte do preconceito, estamos retirando um tijolo dessa muralha de indiferença e desrespeito que insiste em separar pessoas com e sem deficiência. E, acredite, isso já é um avanço imenso. Porque, no final das contas, o que define a capacidade de alguém não é o que falta a essa pessoa, mas o que a sociedade está disposta a oferecer em termos de igualdade e inclusão.
Se a palavra tem poder — e ela tem —, que tal começar a usá-la para construir uma sociedade mais justa? Uma sociedade em que ninguém seja reduzido pela sua deficiência, mas visto, respeitado e valorizado como cidadão pleno.